BERNARDO PINHEIRO, CLAUDIA MELLI E RAFAEL ADORJÁN | 3 ATOS, 3 ARTISTAS
3 atos, 3 artistas – Bernardo Pinheiro, Claudia Melli e Rafael Adorján - reúne diferentes obras, poéticas distintas, mas, nesses caminhos singulares e diversos existe, em comum, uma pesquisa que cruza imagem e mundo contemporâneo. Estabelecendo assim, através de diversas visualidades, algumas perguntas pertinentes para o nosso olhar.
A “Série Azul”, conjunto de trabalhos apresentados pela artista Claudia Melli, surge como uma dúvida. Imagens silenciosas de paisagens em preto e branco de mares e céus. É o que, em uma primeira visada, parece estar diante de nós. Imagens. Quando chegamos mais perto de cada um dos trabalhos, notamos que aquilo que parecia uma fotografia, uma reprodução, é, na verdade, uma sutil pintura de nanquim sobre vidro. A aproximação faz com que notemos as pinceladas, intencionalmente visíveis para quem está próximo. A artista busca a semelhança, mas para introduzir a diferença.
Melli atua na fronteira entre desenho, pintura e imagem, buscando testar os limites não só de cada uma destas técnicas, mas, sobretudo, indagar sobre a natureza dos nossos mecanismos de percepção. Em um mundo no qual o excesso de imagens nos acossa diariamente, somos quase que automatizados para identificar o que vemos como imagens. Já, de antemão, acreditamois que estamos diante de mais uma delas. Mais uma imagem a ser vista e traduzida segundo os seus códigos.
Note-se que Melli não nos dá somente clássicas pinturas de paisagem, tampouco tradicionais fotos em branco e preto de mares e céus. A artista lida, sim, com dimensões clássicas, como o jogo de claro e escuro, mas colocando como questão do trabalho uma tarefa atualíssima que é a de distinção entre imagem e não imagem, e o deciframento das mesmas. Trata-se de nos recordar a necessidade de uma alfabetização visual, premente em um mundo como o que vivemos depois de duas revoluções, a da reprodutibilidade técnica analógica e, mais recentemente, a da reprodução digital.
Vale ainda pensar nas paisagens que temos diante de nós. Na contramão da lógica acelerada da imagem digital, os mares e céus silenciosamente representados, sem presença humana alguma, exalam silêncio, calma e desaceleração, aspectos contrários aos da corrida desenfreada e ansiosa da qual as imagens técnicas fazem parte. Melli toca na questão, mas explicita seu lado, aquele que caminha na contracorrente do frenesi. O próprio tempo de feitura envolvido em cada uma das obras já sinaliza para essa poética da atenção e da paciência propostas por sua “Série Azul”.
A investigação sobre o campo da imagem e nossa relação com o mesmo prossegue na obra de Rafael Adorján. Sua série “Corpo de Delito” apresenta algumas perguntas para o olhar. Estamos diante de duas camadas de imagens. Uma delas exibe, em todas as fotos da série, um corpo nu feminino, que em cada fotografia aparece em uma posição diversa, num ambiente escurecido que remete a uma casa. Sobre esse corpo são projetadas diferentes imagens de slide que revelam cenas familiares cuja visualidade é facilmente reconhecível como uma daquelas provenientes de velhos álbuns de família.
Nosso olhar é chamado, em um primeiro momento, a discernir as duas camadas de imagens, e, em seguida, buscar compreender a relação existente entre ambas. Adorján toca em campos já bastante investigados pela arte, como, por exemplo, o nu feminino, o retrato, as projeções e, por fim, a apropriação e utilização de fotos de álbuns de família com uma atmosfera “antiga”. Como não cair em clichês ao lidar com tantas questões já vistas? O artista consegue ao colocar em pauta, por exemplo, uma ambigüidade bem característica do nosso tempo, a da relação promíscua entre privacidade e voyeurismo.
As fotos se dão em um ambiente doméstico, uma pessoa está nua, ou seja, toda a cena evoca um contexto íntimo, e, no cerne dessa intimidade é introduzida a projeção de pessoas também reunidas em um contexto dessa natureza, no caso em família. Porém elas agora habitam um corpo estranho, desconhecido. A vontade de olhar o outro na sua privacidade e tornar público, projetar essa privacidade, é um sintoma patente dos tempos atuais.
O artista evoca nesse território de questões, mas busca criar um ruído, ao dar corpo, vida e ação para aquela pessoa que recebe as projeções. Em cada uma das fotos ela está em uma posição diversa que dialoga com as imagens que irá receber. Como se a invasão deflagrasse um processo de reação, no qual o corpo fosse obrigado a reagir e interagir com o espaço recém criado, iniciando uma espécie de conversa com aquelas imagens desconhecidas, aqueles inúmeros corpos, pertencentes a uma outra atmosfera, outro contexto, íntimo e estranho, a um só tempo.
Bernardo Pinheiro vem há alguns anos trabalhando com imagem e movimento em inúmeros vídeos. Na presente exposição o artista apresenta uma série de fotografias derivadas de alguns desses vídeos, cuja série chama-se “Eqüidistantes”. As obras matrizes das fotografias exibem imagens de elevadores de portas pantográficas, que abrem e fecham enquanto o elevador muda de andar. Entretanto, a edição realizada pelo artista, sobrepondo e repetindo o abrir e fechar das portas, nos dá a sensação de que ao invés de subir e descer, não se está indo para lugar algum. Não há mais a verticalidade original implícita no uso do elevador. Mas sim uma espécie de horizontalidade achatada. O prédio já não tem início, meio e fim, mas sim uma seqüência cíclica sem começo ou final. Não se chega ou sai em nenhum andar. Algo nitidamente está em movimento, mas nós, do ponto de vista da câmera, parecemos não sair do lugar.
Os movimentos são desnivelados pelo artista, criando essa tensão entre algo que deveria caminhar e nos levar para algum ponto, mas de onde, num entanto, não saímos. Pinheiro instaura a contraditória sensação de um caminhar imóvel. Ao colocar todos os andares eqüidistantes, já não existe verticalidade, hierarquia, mas sim uma horizontalidade, dada pela perspectiva do olhar. Mas, note-se, temos aqui mais uma dobra. Horizontalidade, nesse trabalho, não é sinônimo de horizonte, pois este se encontra enclausurado, limitado, em um diálogo sutil e perspicaz com a própria natureza da linguagem do vídeo que suprime a tridimensionalidade.
As fotografias derivadas das imagens em movimento, revelando em uma seqüência de frames a dinâmica cíclica e as sobreposições, têm, por sua própria natureza, a capacidade de estancar o tempo e re-afirmar a bidimensionalidade que o trabalho matriz já intencionava revelar. De maneira simples, Pinheiro realiza, nos vídeos e nas fotos, simultaneamente, um pensamento sobre a própria linguagem que utiliza e nos faz pensar sobre a mobilidade imóvel que ronda os dias de atuais. Em um tempo onde tudo parece convergir para uma corrida permanente, mas que não se traduz em linha reta com começo meio e fim, mas sim em um presente contínuo e infindável, o elevador cíclico e sem horizonte de Bernardo Pinheiro coloca para nós uma pergunta fundamental: para onde mesmo estamos indo e com tamanha pressa?
Luisa Duarte