ARTURO GAMERO | COMO TATUAR UM ESPÍRITO?

 

É repatriar sem cessar o mundo para o antes do mundo, é reviver sem cessar, restituir vida, confiar de novo na nascente, revivificar a vida, reiluminar o sol. Sou consagrado a essa cintilação, à ereção desse rosto privado de linguagem.

Pascal Quignard

 

Falo de pedras que nem sequer tem de esperar a morte e que não tem nada mais a fazer do que permitir deslizar-se sobre sua superfície de areia, o aguaceiro ou a ressaca, a tempestade, o tempo... falo das pedras nuas, fascinação e glória, onde se oculta e ao mesmo tempo se entrega um mistério mais lento, mais vasto e mais serio que o destino de uma espécie passageira. 


Roger Caillois

Maio/2018
1. Nos fundos da casa onde cresci havia uma colina encoberta pela mata, a umidade atravessava a casa, espessa, penetrava nas paredes como espíritos povoando o chão de manchas esgueiradas pelas frestas. Chovia, a folhagem brilhava de água, calha de escamas, córregos enchendo de estrelas a pequena vala escura ao res da casa, galhos, brotos, folhas e raízes, flores e frutos, temperatura fermentada das cores mais terrosas, vida macilenta no reduto de perfumes negro esverdeados; tateando com os pés o fundo movediço, eu,água limosa  abrindo os dedos como uma raíz, meu sangue pantanoso observa a chuva, imóvel. 

Abril/2018
2. Sob o peso do tempo, as páginas se dobram, esvaziam-se de mim. Eu poderia queimá-las. Deixar que as páginas, cheias de palavras, fossem arrastadas pelo fogo,  traduzidas, assim, pelo idioma luminoso da matéria que respira em círculos no ar, caligrafia dos óbitos incendiados. Essas páginas que por tanto tempo foram anfitriãs silenciosas de hóspedes marcados pela gravidade obsessiva de uma única paisagem. As árvores, o cisne, a continuidade entre meus pés e a corrente magmática absorvendo cada espaço de osso, cada linha ou ponto dessa imensa aporia dos espelhos.

Maio/2017
3. Como édifícil começar a escrever onde corre a cólera dos arbustos, ira das ervas, paciência vegetal das estações, fogo mudo, a água antecipando em mim todo tipo de palavra. Essa imagem infiltra-se como a terra invade os ossos, como num sonho o inseto encharca a língua na desordem das sementes. Escrevo aqui, nas mãos, no corpo, palavras arranhadas, porque este caderno ainda não tem suas próprias palavras. Estou nu, sou um animal aberto na vegetação, não se sabe se morto ou vivo, dilacerado ou prenhe, sou uma flor, tenho apenas essa frutificação das mãos.

Abril/2017
4. Quero desenhar a fermentação de um sonho, escultura de ar do meu silencio, imenso estatuário de manchas gravadas no tempo, frutificação dos lábios, facas verticais, insetos, céu demencial, vozes mergulhadas mansamente no amarelo, pele abreviada das maçãs, enguias, abismos levantados, sinos macilentos, quartzo, cerâmica noturna do coração.

Agosto/2016
5. Vejo como tudo se ramifica de costuras radiais no espaço tocando em camadas dissonantes de um mesmo nós de vida, deixo que meu corpo se apoie por dentro, meu olhar se emposse com sangue e tédio, o ar nas cavidades pela face traduzida centímetro a centímetro; as pálpebras cobrindo pupilas soltas, a infiltração da luz nos líquidos corporais flutuando como espíritos nas paredes do meu corpo derramam-se como um caudal de insetos, fios de resina. O olho veste a luz no oco do meu crânio, cada osso mergulhado nesse corpo, pés castanhos, cada fibra lacunar enraizada nos pulmões, tampo harmônico de água, coração, enguia capilar, goivas de ar, partículas que sobem alto, coluna de água e talos vertebrais.

Outubro/2015
6. O homem lançado no mundo liso não encontra rugosidade hospitaleira, recua atéos óbitos incendiados, regressa à aquosidade natal dos dédalos orgânicos,às vibrações vitais que convulsionam seu rosto pendido no abismo. Respira e a passagem do ar no oco da face agitada por um grito e a fina duração no espaço que devora sonhos em cascata tornam-se o seu labirinto maternal.

Agosto/2004
7. Uma linha negra tentava sublinhar o fluxo que une o corpo emplumado e branco ao pescoço do animal, esse volume tortuoso como um labirinto que resguarda a escuridão de um sopro aberto evoluindo desde o bico até os pulmões estufados sutilmente. Como me seduz ainda hoje a coesão magnética dos corpos animais! o orifício das narinas amalgamado pela torção de um nervo de ar que liga o crânio ao ânus como um eixo em novelos num corpo que flutua. Ele é uma aparição em sonho, um útero de que brota a cauda em falo e a gordura das plumas expelindo a infiltração do peso aquoso que o faria igual a água. Ele se dobra, invertebrado, invade o corpo com a cabeça, torna-se esfera branca com o crânio nas entranhas e a água circunscreve o nado numa álgebra leitosa de manchas ecoadas, abrindo caminho em um espelho.

 

Arturo Gamero, Maio 2018