MAI-BRITT WOLTHERS | A REVELAÇÃO DO MUNDO PELOS FRAGMENTOS DO REAL

26.05.2022 — 16.07.2022

 
Mai-Britt Wolthers faz o mundo aparecer por meio de vestígios, em uma construção rigorosa e, ao mesmo tempo, sublime de cor e forma.
— Bianca Coutinho Dias
 

Foto: Estúdio em Obra

 
 

Da relação com o espaço, a natureza ou a cidade, seu gesto artístico se delineia como uma captura poética e fragmentária que revela, no tremor da representação, a sua potência máxima.

 “Fragmentos do Real” – a exposição que aqui se apresenta – é derivada de uma  residência artística de alguns meses, em um quarto-ateliê no topo de um prédio industrial no bairro do Brooklyn, em Nova York. Das imersões pela cidade se originaram pinturas, objetos e uma instalação/escultura, numa variação de linguagens em que se destacam a centralidade da presença cromática. Para esta série inspirada na luz enigmática dos neons que banham a cidade como uma presença vibrátil, a artista elegeu o rosa intenso.

A paisagem urbana revela uma tensão constantemente renovada entre natureza e cultura. Nas ruas, ela observa uma grande quantidade de sacos de lixo e recolhe coisas que encontra, em contraste com o mundo em construção: galhos, sementes, pedras e outros objetos orgânicos que sempre fizeram parte de seu vocabulário artístico – uma aposta na imprecisão e na possibilidade da beleza que resiste no mundo, uma forma de lidar com o resto e dar destino a ele.

O entorno e a relação com a cor acompanham o percurso da artista, que já teve ateliê no meio da mata atlântica onde, com uso de várias tonalidades de verde, iniciou uma grande série de pinturas relacionadas a florestas brasileiras. O encontro entre forma e cor é absolutamente  singular e, a cada exposição, vai se transformando. Houve também uma época de azuis, agora os rosas e suas nuances.

Há, nesse apurado senso estético em relação às tonalidades e combinações, a produção das suas próprias cores. A tinta nunca sai direto do tubo para a tela, mas passa por uma fatura singular, que Mai-Britt nomeia a partir do espanto diante da presença e da vibração mínima e absoluta de cada experiência transmitida pela cor, sintetizada em frases como “a pedra contorna o preto”,  “rosa entrou quando nada terminou”, “azul é o sacrifício do branco”.

Alberto Giacometti – artista que se espantava e se maravilhava com a diferença mínima e, portanto, radical e singularizadora de cada coisa, de cada cena – dizia: “Tudo me ultrapassa”. Mai-Britt também não fecha os olhos a essas revelações cotidianas, deixando entrever em seu trabalho que o que chamamos “realidade” é uma construção nunca de todo finda, cabendo à realidade psíquica ou ao gesto artístico lhe dar contorno, congruência e, mesmo, possibilidade de fruição. 

O percurso de Mai-Britt começa na aquarela e segue para a tinta acrílica com o mesmo rigor e atenção ao aspecto cromático. Em “Fragmentos do Real”, a ética do gesto artístico faz explodir a cor, mas persiste – como em toda a sua obra – como um exercício de extração e redução para que, no apagamento do excesso, algo apareça e se revele criando uma outra forma que deixe entrever e eclodir o caráter real do que nos cerca, criação senão da própria vida, em um trabalho que mobiliza algo do mistério daquilo que se entranha na pintura, no equilíbrio das composições das obras.

Frente ao assombro e destruição do mundo a artista nos oferta a beleza, mas uma beleza que revela as inesgotáveis contradições de tudo. Do seu olhar e imersão na cidade resultam verdadeiras epifanias feitas de revisões e autorrecapitulações de seu próprio trabalho. Suas pinturas não nos contam uma história, mas, como uma história, levam-nos continuamente para fora dela mesma. Em formas que criam uma geometria ambivalente não se vê um acontecimento nem uma paisagem extraída diretamente da realidade, mas transfiguração, uma transliteração em que fragmentos de uma língua íntima e de um caleidoscópio pessoal se comunicam com nossas cartografias afetivas. Cores, texturas, formas e movimentos tornam possível uma relação que revela não somente espaços pictóricos, mas fragmentos do real.

Os tons fortes, o gesto de construir a própria tinta, o ato de transfigurar a representação que se singulariza a cada quadro, a cada obra, dando origem a variações formais e cromáticas, faz com que possamos encontrar a natureza na cidade e, nesses vestígios, esbarremos em um quase silêncio como um poema de E. E. Cummings: “nalgum lugar em que eu nunca estive, alegremente além de qualquer experiência, teus olhos têm o seu silêncio: no teu gesto mais frágil há coisas que me encerram, ou que eu não ouso tocar porque estão demasiado perto”.

— Bianca Coutinho Dias

 
 

FOTOS

 
 
Eduardo Fernandes