RICARDO BECKER | (DES) FAZER IMAGENS

01.06 a 31.07

“Não creio na palavra ser.”
Marcel Duchamp

O observador, sem o qual nenhuma obra se completa, não escapa da própria imagem nestes trabalhos de Ricardo Becker. Ele participa como reflexo e como aquele que, voluntária ou involuntariamente, enquadra as imagens através de sua posição e do seu movimento.  Ele participa com o olhar e, de modo literal, com sua imagem virtual. Mas é subtraído o que a imagem especular tem de duplicata perfeita – e às vezes inclemente. Do domínio da percepção pura e simples , entramos no campo da significação.   Pelo movimento do corpo, estes trabalhos se expandem no espaço real. Eles são simultaneamente óticos e simbólicos; planares – embora as duas superfícies, a do vidro e a do espelho, criem uma espessura – e espaciais – embora extrapolem o quadro sem sinal físico. Eles trafegam entre o diáfano e o extensível.

O espelho, como superfície refletora, não é ele próprio uma imagem, mas um receptáculo de imagens. Colocar diante dele o vidro é como querer refletir o transparente – um paradoxo.  Um terceiro elemento nega ainda mais uma vez a imagem: o talco. O espelho reflete o talco no vidro – além de transparente o vidro é também refletor – que reflete o talco no vidro refletido no espelho que reflete o talco no vidro refletido no espelho refletido no vidro que  reflete  o talco no vidro refletido  no  espelho  refletido no vidro refletido  no espelho e assim sucessivamente em remissões infinitas. O vazio entre as duas superfícies é preenchido por uma névoa imagética. 

A materialidade gasosa do visível dá à imagem uma unidade de bruma. O movimento, nela incluído pelo que está do lado de fora, faz do trabalho algo que se coloca face à própria imagem do observador e ao que está no campo de visão do espelho – imagens que passam como a correnteza de um rio. 

Mas, no espaço entre o espelho e o vidro, em alguns trabalhos, há outro espelho, desses de móveis antigos, bisotados, de formato único, carregados de passado. Aprisionados no vão nebuloso, ou apenas com seus contornos desenhados no vidro em monotipia, ou ambas as coisas, eles remetem a imagens que já não ocorrem, congeladas impressões. 

As lâminas dúplices  convidam o  observador  a penetrar  sua lenta bruma.  Olhar é muito perigoso.   Mais ou  menos  visível na  baça  superfície, aqui transparente, ali opaca, o espelho desfaz a imagem individual e ambiciona representar o invisível. O invisível, como diz Duchamp, não é obscuro nem misterioso, é transparente – como o vidro. A opacidade  branca  é  que torna o  invisível  perceptível e  cria  atrito  para o olhar. E a imagem, entre a integração e a desintegração, parece no mítico instante de fundar-se. 

Esse mito é ralentado – Duchamp chamava suas pinturas em vidro de retarde – como se o movimento interior e volitivo de imprimir a realidade na consciência se detivesse para se auto-observar. E o que surge não é a  imagem expressionista  da realidade subjetivada, mas um jogo de duplos e veladuras, entre a semi-dissolução e a semi-solidificação, que materializa a realidade labiríntica e fantasmagórica de uma subjetividade voltada sobre si, a formar e a observar a identidade a formar-se. O estranhamento pode dar a sensação de um filme de terror. 

Mas a imagem forma-se no tempo. Está a ponto de se dissociar e de se unificar. E forma-se também no espaço real. Ao deslocar-se, o corpo desfaz-se dela. É curioso o modo como esses trabalhos, em seu caráter ótico, englobam o entorno, como um grau zero – e mítico – da espacialidade. E como o minimalismo das superfícies transparentes e receptoras convive com o simbolismo dos espelhos antigos; o drama da ação que encenam, de herança barroca (mas, aqui, há antes uma desilusão de ótica), coexiste com o que poderia ser uma imponderável atualização do retrato, inteiramente reconfigurado pela subjetividade contemporânea. Apesar de estáticos, esses objetos-pinturas se produzem como evento. Eles são dispositivos de desfazer e fazer imagens, cuja singularidade acolhe o acidente e em que a noção de autor também se desfaz. 

O espelho é uma prótese que produz uma experiência limiar entre a significação e a percepção. Ele está presente na mitologia grega – Narciso desfaz a própria imagem refletida na superfície do lago ao tocá-la –, na literatura de Borges – “Os espelhos e as cópulas são terríveis porque multiplicam os seres” – na psicanálise de Lacan – na “fase do espelho”, a criança compreende que a imagem refletida é a sua e reconstrói o corpo, num “júbilo especular”, como algo de externo –, e na filosofia de Nietzsche – “Se queremos ver as coisas no espelho, só vemos o espelho, se queremos ver o espelho, só vemos as coisas nele”. A relação entre o duplo e o um de que esta superfície refletora fala num nível metafórico, está ainda na contraditória frase de Rimbaud – “Pois eu é um outro”.

Nestes trabalhos, a imagem é especular – uma ocorrência – e também um tipo – um signo. E é exatamente isso o que interessa. Assim como diante do espelho, ao fazer nossas abluções matinais, vivemos a imagem virtual como se fosse real, corremos o risco de, ao determinar os objetos por sua representação, tomá-los como premissas, acreditando numa unidade prévia dada no real, que os signos apenas reconhecem. A essa ilusão realista evidentemente não escapa o conceito de ser. Estes trabalhos de Becker indagam os processos de significação e de identidade, inseparáveis da percepção, desfazendo o ideal em que assenta a crença na palavra ser no espaço poético que se alimenta do paradoxo.         

Fernando Gerheim 2007

Eduardo Fernandes