SHU LIN | A CASA FLUTUANTE

24.06.2023

 
O trabalho de Shu Lin reverbera uma viagem existencial solitária e uma mobilização poética de solidariedade com o mundo.
— Tálisson Melo
 
 
 

O trabalho de Shu Lin reverbera uma viagem existencial solitária e uma mobilização poética de solidariedade com o mundo. Suas pinturas expressam um imaginário fluido da habitação nômade, de uma complexa topologia de si mesma, à deriva e em contato, ambivalente, fundindo escalas planetárias a gestos tão diminutos e sutis do cotidiano. Seu ateliê está instalado em um sobrado amarelo onde a artista também reside. Além de cultivar cactos e suculentas no jardim, ela também se dedica obstinada à pintura encáustica, tendo criado um enorme acervo de obras ao longo das últimas quatro décadas. Conversando em sua casa-ateliê, buscamos chaves de leitura para sua poética, e elementos de sua biografia forneceram alguns caminhos para pensar com sua produção artística.


Hoje, com sua primeira exposição retrospectiva, A casa flutuante, Shu apresenta alguns frutos de sua produção artística que atravessa o cotidiano e a experiência de, ao mesmo tempo, migrar e construir os sentidos de um lar, de abrigo e acolhimento para além de paredes físicas de uma casa assentada em solo estável. Suas pinturas surgem de perseguições duradouras disparadas por objetos muito simples, corriqueiros, mas carregados de afeto e simbolismo. Uma viagem na qual se perturbam as escalas geográficas, as certezas e a aparente estabilidade de muitas coisas. São as quinas e cantos do ambiente construído da casa, telhados, janelas, fios dos postes, sua gatinha Mimi, palitinhos de fósforo, os temperos de sua cozinha, e as várias panelinhas usadas também em seu ateliê - fundamentais para o fazer artístico, pois nelas Shu derrete a cera e funde os pigmentos para construção da matéria básica de suas encáusticas.


Em cada tela individual e nas séries que compõem polípticos, Shu condensa elementos do cotidiano, composições ambíguas entre familiaridade e estranhamento, permanência e desaparecimento, solidez e fluidez. A série Flutuantes é síntese dessa operação: massas de cor dialogam a distância ou se justapõem formando outras imagens, conjuntos de ilhas na iminência do movimento, o que também aparece nos desenhos Corpo Vivo. E nas séries Recortes um estilhaçamento forma arquipélagos partindo de uma mesma paisagem ou arquitetura que se constroem e se desmancham simultaneamente. Uma tensão entre dentro e fora também se apresenta na série Enigmas, elementos que insinuam vastidões interiores, como linhas de um horizonte oceânico ou desértico que também habitam os cantos de um cômodo, de uma gaveta, ou de sonhos e memórias quase perdidos.


Shu nasceu e cresceu em Taiwan, uma ilha do Pacífico que viveu séculos de disputas e hoje configura um quebra-cabeça internacional, abrigando milhões de pessoas e um complexo industrial-tecnológico importante para a economia global. A ilha foi um domínio chinês por mais de 200 anos até ser chamada Formosa por exploradores portugueses e incorporada no fluxo trans-hemisférico de ocupações europeias no século XVII. Sua família chegou àquele território imediatamente depois da Segunda Guerra Mundial, quando findou o domínio japonês na ilha, exilados da China continental sob o governo de Tsé-Tung. Seu pai estava entre os nacionalistas que tornaram a ilha um espaço para construção de uma outra China, em recusa àquela que se reconfigurava no continente, sob governo de Tsé-Tung. E sua mãe, de origem birmanesa, trazia outros elementos de memória e afeto para esse contexto de flutuações migratórias intensas que não só fizeram da ilha tão densa e complexa, como também deram contornos para o imaginário territorial em que Shu costurou as primeiras tramas de sua identidade.


Nesse lugar, as escalas mínimas do íntimo, familiar e local se enredam a escalas gigantescas do estranho, do externo e mundial. Esse é um aspecto constitutivo da poética fractal da artista, com composições que convidam o olhar ao mergulho para dentro e para fora de uma só vez. Outra flutuação migratória da família veio a alargar ainda mais sua cartografia, quando deixou a ilha com sua família, migrando para São Paulo, em 1966. Da adolescência e da vida adulta no Brasil, aprendeu a construir casa-longe-de-casa, um abrigo mais composto por afetos e identificações. Ao mesmo tempo, descobria uma língua para se entramar com mais culturas, histórias e relações, passando a viver o estranhamento de si e do mundo, construindo diversas familiaridades.


O solo movediço que é base para a poética do abrigo que Shu vem desenvolvendo alargou-se ainda mais em seu horizonte oriental quando foi viver em outro país-arquipélago, o Japão, onde plantou o sonho de criar sua própria oficina de arte para crianças e se dedicar a pintar.


Nesse fluxo de trocas, espalhou sementes e colheu frutos de um fazer minucioso, atenta a pequenos gestos, brotos buscando formulações para sua casa flutuante no espaço-tempo, ao longo de um trabalho criativo dedicado aos sentidos mutantes do abrigo na impossibilidade da fixidez. Nesta exposição retrospectiva de sua obra, apresentamos alguns dos alicerces móveis e das estruturas ambulantes que seu olhar afetuoso entre deslocamento e cotidiano vem traduzindo em imagens.


Curadoria e texto Tálisson Melo

 

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