BRASÍLIA UTOPIA LÍRICA - Exposição de Vicente de Mello - CCBB
Brasília Utopia Lírica de Vicente de Mello é uma série fotográfica inédita realizada em 2011, que propõe uma leitura subjetiva e atemporal da cidade de Brasília. Brasília remete a diversas características de registro de cidade: arquitetônico, renovador, expansionista e documental; um marco na fotografia moderna brasileira, incessantemente fotografada, o que desencadeia invariavelmente seu desgaste imagético. Tendo essa premissa como base de pesquisa, Vicente, procura trazer à tona um pensamento mais amplo sobre cidades, atentando para as possibilidades de desvios dos caminhos já tradicionalmente trilhados e despindo-se de vícios do olhar. São fotografias de uma cidade atualizada em sua fotogenia clássica, onde o artista pontua uma reorganização da narrativa histórica iconográfica. Cada obra tem em seu título o traço identificador para cada foto, como uma fagulha que desencadeia o vigor da imagem. Este cruzamento palavra-imagem ganha potencialidades tão impensáveis quanto sua percepção e o olhar ganha a promessa de escapar da temporalidade.
Para muita gente, Goya estava certo: “o sonho da razão produz monstros”. Brasília teria sido um deles? Não, acredito, que não! Acredito, inclusive, que fosse muito improvável o próprio Francisco José negar tão “luciente” cruzeiro. No entanto, o chamado Plano Piloto não deixou de significar uma espécie de fase REM do sono iniciado por visionários como o Marquês de Pombal, Soufflot, Boullée ou Ledoux. Ali, na última e mais espetacular aventura lírica da utopia racional, a grande curva, que vai da Repúblicade Platão até o Admirável Mundo Novo de Aldous Huxley, foi encerrada. Talvez, então, após um dos maiores sonhos que oprojeto civilizatório ilustrado pode produzir em quase três séculos, só restava mesmo ao homem moderno despertar. E despertou, tanto nos satélites das desordens periféricas, como na estereotipia das paisagens esgotadas. Não é fácil viver ou fotografar em Brasília, porque não é fácil habitar uma utopia ou enxergar um lirismo.
Para uma cidade como poucas, então, ao mesmo tempo ícone moderno e extremo pós-moderno, um fotógrafo como poucos, ao mesmo tempo clássico e contemporâneo. Junto a uma marcada ascendência conceitual, Vicente de Mello conserva aquele mesmo requinte formal da época heroica de Stieglitz, Strand e Ray: o preto e o branco modulados em campos tonais de cor graficamente articulados como formas. Essa referência geral e básica, de formação, é peculiarmente ultra salientada em Brasília utopia lírica. Estratégia, que não é gratuita, nem inconsciente. Ao contrário, para fotografar Brasília, Vicente exigiu de sua fotografia intelectual o mesmo sacrifício disciplinar classicista que Niemeyer e Costa exigiram de seus funcionalismos construtivos, em busca de um resultado que superasse o conceito, a norma clássica e a práxis formal: atingir uma organicidade poética, quase simbólica, geradora de um lirismo afetivo, quase transcendente.
Aqui, entra em jogo outra referência fundamental e recorrente na obra de Vicente de Mello: a poesia do poeta mato-grossense Manoel de Barros. Primeiro, pela qualidade visual de seu texto “fotogênico” e, a partir daí, pelo sentido de epifania e descoberta que decorre da peculiar transdução entre a força categórica da descrição telúrica e a afetuosidade simbólica da ideação transcendente. Esta transversalidade entre olhar e imaginação opera uma espécie de destruição do já visto, uma anamnese, que demanda outros regimes de visibilidade para que um novo sentido possa ser acedido. A poesia, em Barros, é um método de conhecimento da realidade desenvolvido a partir de um processo de desconhecimento da realidade. Do mesmo modo, Vicente precisou, antes, “desconhecer” Brasília, e nos pedir, depois, que desconstruamos a sua estereotipia. Entretanto, este ato de desconstrução constitui, simultaneamente, um ato de construção, assim como, no glossário neológico de Barros, uma “desformação” implica, necessariamente, uma “comunhão”.
Assim como as invencionices do poeta pantaneiro, as fotografias de Vicente, aparentemente abstratas, metafísicas ou fantásticas, são, por regra, absolutamente concretas, tangíveis e reais. Embora as primeiras não descrevam o pantanal, nem as segundas reproduzam Brasília, ambas apresentam, respectivamente, a natureza e a cidade como nunca descritas e reproduzidas. São imagemna acepção mais original e filosófica do termo: realidade intuída, mundo imaginado. A imaginação, em sua atividade mais funcional, é capaz de fazer da coisa uma imagem, mas, em sua atividade transcendental, pode fazer da imagem uma coisa. Poesia e fotografia: transcendências de fazer a linguagem ganhar estatuto de coisa.
Sem narrativas de apoio, promessas de estilo, justificativa ética ou compromissos sociais, aquela poesia, que
é pura coloquialidade, e essa fotografia, que é estética pura, estão vocacionadas a existirem por si só. O valor de palavras e de imagens deste tipo pode ser aferido somente pelo grau de “coisicidade” a que chegam. Este valor não advém da realidade, que decerto as afetou e continua afetando, mas de sua transcendência, ou seja, da própria afecção. Quer dizer, não advém do pantanal e nem de Brasília, mas do alcance imaginativo. Advém daquilo em que o poeta e o fotógrafo são capazes de transfundir, transmutar, transformar e transcender o que viram e como viram em algo transvisto: “O olho vê, a lembrança revê, e a imaginação transvê. É preciso transver o mundo”, disse Barros. Que esta fotografia, então, coisifique Brasília, utópica e lírica!, já que, de tão vista e revista, merecia mesmo ser transvista.
Waldir Barreto