CLAUDIA MELLI | TUDO NA VIDA É UM PAÍS ESTRANGEIRO
16.06.11 a 30.07.11 - Tudo da vida é um país estrangeiro | Claudia Melli
Curadoria de Paulo Miyada
Tudo da vida é um país estrangeiro | Claudia Melli
O título dessa exposição poderia ter se perdido, já que talvez tenha sido escrito com a despretensão e a agilidade de um “espero que tudo esteja bem” ou “mande um beijo para as crianças”, passagens banais de cartas trocadas entre amigos e parentes. Não obstante, essa frase ligeira estava numa carta enviada por Jack Kerouac em 1949, ano em que o escritor norte-americano começou a reunir as notas que resultariam no livro-pergaminho On the road, datilografado em 1951, durante três semanas, em 35 metros lineares de papel manteiga.
O livro colocou em combustão mais de uma geração de jovens ansiosos por ouvir alguém que, como eles, desconfiasse que o mundo estava morto e clamava por jornadas hedonistas que o reavivassem e, ainda, transformou cada página escrita por Kerouac em um objeto de culto e estudo, alvo de olhares atentos, dispostos a encontrar citações como a que foi emprestada por Claudia Melli nesta exposição.
No intervalo que existe entre 1949 e 2011, a frase foi reproduzida em inúmeros ensaios sobre o escritor e, o que talvez seja mais importante nesse caso, em coletâneas de citações e em reflexões sobre a vida contemporânea. Assim, de fragmento do discurso de um ícone popular da vida beatnik norte-americana e da contracultura mundial, fez-se sinopse de uma realidade marcada pela desterritorialização e estranhamento dos sujeitos.
Para Claudia Melli, ainda, fez-se mote de uma busca por lugares comuns e, que, no entanto, não existem. Explico: na série homônima a artista nos apresenta estradas que avançam rumo ao horizonte, rasgando territórios virgens ou descampados que poderiam estar em qualquer parte, pois, a bem da verdade, não estão em parte alguma. Assim é também com as outras séries expostas, com mares, depósitos, barrancos, bosques e grades imaginados pela artista e que pertencem a toda e a nenhuma parte. Não obstante, nós as reconhecemos e identificamos com alguma memória qualquer, uma reminiscência ou fantasia dos lugares que conhecemos ou gostaríamos de conhecer.
Esse jogo de identificação e reconhecimento é reforçado pelo título das séries recentes de desenhos – Tudo da vida é um lugar estrangeiro (2011), que já conhecemos, e Lugares onde nunca estive (2010-11). –, os quais, se olharmos bem, poderiam ser convites de viagem, que, em preto e branco, se expandem e se retraem. Espalhados pela galeria, levam os olhares do público de um canto ao outro, montando, na sua imaginação, itinerários que poderiam começar a qualquer instante, bastando esquecer-se da chave de casa e do horário do trabalho – não seriam esses os lugares mais verdadeiramente estrangeiros que habitamos? – e partir rumo aos lugares onde nunca se esteve. Aqui, o infinito do mar (série Azul, 2008-2011) se faz em linhas de nanquim no verso de vidros semi-foscos, separado do público pela espessura vítrea, que atenua contrastes e altera sutilmente a tonalidade dos traços. Mais ainda, porque aqui insuam-se reflexos sobre a imagem ou, mesmo, que as imagens não seriam senão reflexos de paisagens distantes.
Atente, portanto, que a artista trabalha diretamente sobre o vidro, sem a firmeza garantida pelo atrito constante do papel de desenho. As paisagens se conformam delicadamente enquanto seca a superfície do vidro, até então sujeita a gestos de liquidez que se renova a cada traço sobre o nanquim aguado que por vezes enxagua toda a superfície de um céu. Assim como toda representação do mar é uma conformação instantânea capturada, que presume movimento logo antes e após as cenas, as imagens de Claudia Melli parecem ter sempre recém aparecido e prometem se desfazer com a fragilidade de suas linhas e manchas. Há aí, certa analogia com a fotografia, que, se apenas revelada mas não fixada pelo líquido químico adequado, pode borrar com um leve toque do polegar. Analogia reforçada pela procura do alto contraste em preto e branco e, claro, pela verossimilhança alcançada, menos pelo realismo dos traços, que em verdade são bastante gráficos, e mais pelo preciosismo do desenho, que adequa a espessura das pinceladas e a densidade das manchas a efeitos atmosféricos precisos.
Constrói-se daí um arrebatamento, uma curva de encantamento que começa com a ilusão realista e termina com a percepção analítica de cada decisão da artista. Ainda na chave da aparência de instantâneo dessas imagens, vale lembrar da super-produção Play Time (1967), na qual o humorista francês Jacques Tati representa os novos conjuntos de edifício comerciais construídos na periferia da Paris pós-guerras, com suas paredes envidraçadas, sustentadas por perfis de metal que parecem tirados dos projetos do arquiteto moderno Mies van der Rohe. Por esses palácios da nova eficiência corporativa, passeiam turistas distantes dos monumentos e pontos turísticos de capital francesa, que não se insinuam no skyline de torres transparentes, mas que, ainda assim, vez e outras surgem no filme em reflexos rapidamente conformados no abrir e fechar de portas e janelas de vidro. A torre Eiffel, a Sacré Coeur de Montmartre, reflexos fugidios e, ainda assim, suficientes para insunuar reminiscências da cidade histórica sobre essas construções comerciais sem história e genéricas (estrangeiras, digamos).
De forma análoga, poderíamos elaborar acerca dos trabalhos de Melli: o mar, a estrada, reflexos e sugestões de imagens que o olhar captura e lança à memória e ao afeto como pedidos de pausa, de imersão em um tempo outro que não o da vida contemporânea insessantemente lançada no reconhecimento simples e automático de lugares que todos precisam conhecer antes de morrer.
A fórmula se complexifica na série Lugares onde nunca estive, na qual, além de reflexão, há profundidade. Pois aqui o meio é o acrílico, sob o qual são coladas folhas de transparência com fragmentos de imagens tomadas da internet, quase todas publicadas como ilustração de matérias jornalísticas. Mesmo justapostas e combinadas, essas transparências cobrem apenas parte das chapas de acrílico, e suas linham se expandem em linhas de nanquim – agora aplicadas sobre o papel –, ou se duplicam noutras linhas feitas sobre o plano frontal dessas mesmas chapas. Há, portanto, três camadas translúcidas que interagem no desenho de lugares que nem bem são aqueles fotografados pelo fotojornalista nem bem os que Claudia Melli poderia ter imaginado sozinha. De certa maneira, a artista assume o papel de primeira espectadora da obra, começando o jogo de identificações e combinações mnemônicas diante de fragmentos de imagens de paisagens.
Por tudo isso, é difícil saber qual será o próximo convite feito por Claudia Melli em suas, digamos, propostas de viagens para dentro de si. Sabemos apenas que cada um deles exigirá seu próprio suporte, escala e materialidade, que a reflexão poderá estar sugerida ou se fazer explícita e, em todo caso, que o traço do desenho da artista deverá seguir sem pudores de seu preciosismo e da sedução que provoca. Já os lugares a se conformarem são quase ilimitados, pois, se On the road começa pela hipótese de reencatamento do mundo através de uma jornada sem limites e potencialmente auto-destrutiva, ele termina com um mundo terminantemente impregnado de lembranças.
Paulo Miyada Maio de 2011