CLAUDIA MELLI: SOMOS TODOS DO MATO

12.09.2024

 
 

por Claudia Melli

 
 

Há algum tempo atrás foram as danças rituais, que em seus desenhos feitos a nanquim sobre poliéster, Claudia Melli entendia de outro modo que não as coreografias funcionais cotidianas, os gestos automatizados, esquecidos ou simplesmente alheios ao que há de interessante nas coisas, do que se pode obter a partir dos desvios, encaminhando-se por outras rotas, outros gestos, que não os de sempre, glaciais. Dançar, como escreveu Paul Valery em seu estudo sobre as bailarinas de Degas, é reagir aos movimentos efetuados “sempre segundo uma lei de economia de forças.” Claudia elabora a dança como liturgia, mas também como gozo, um meio de se atingir um plano maior, perceber-se parte de um todo, sair-se de si. Como uma reza, mais claramente, como alguém que se ajoelha e reza, dissolvendo-se, abandonando momentaneamente a solidão do indivíduo, pretendendo comunicar-se com a natureza, com as forças acima de nós. 

Depois veio Respira, pinturas de um mar profundo, frisando a desmesura, um pensamento, talvez uma lição para si própria, sobre nosso corpo minguado, nossos limites estritos, o inevitável silêncio diante dele.

A artista prossegue em sua conversa solitária feita à base de imagens, convidando-nos a entrar na floresta, bosque ou, como ela prefere, no mato. Nós também somos do mato, título tomado de empréstimo do mestre Gilberto Gil, um desses sábios que nós devemos fazer por merecer, são um conjunto de pinturas  verdes aplicadas sobre películas de poliéster, vale dizer, sobre um tipo de polímero. O próprio Verde Esmeralda, a cor predominante dessas visões da natureza oferecidas pela nossa artista, pode ser produzido a partir de pigmentos sintéticos. Mais do que isso, também conhecido como Verde Veronese, o Verde Esmeralda, nome que tem origem na pedra preciosa, com seu azul-esverdeado brilhante, depois de reverenciada ao longo de séculos passou a ser evitada por causa de um de seus componentes –arsênico-, ser potencialmente letal.

Claudia Melli envereda por florestas representando-as sob um suporte não natural, fazendo uso de uma tinta cujo colorido remete a uma história arriscada, e que de algum modo remete a dinâmica destrutiva que nós mesmos desencadeamos. Mesmo colocando em risco nós e a natureza, posto que somos uma coisa só, mesmo que tenhamos nos constituído a partir do poder de transformação, o que  envolve algum grau de violência e destruição,  afinal entre os animais somos aqueles que deixa os rastros mais profundos, é mais do que chegada a hora de calibrarmos essa relação. 

Essas telas, contudo, não devem ser entendidas como um libelo ecológico, não estão a serviço de alguma denúncia, o que seria ocioso, quase desnecessário, neste nossos tempo em que as vozes se incendeiam por nada, acusando-se uns aos outros enquanto se eximem de qualquer responsabilidade. Essas pinturas exalam frescor e umidade, colhem o olhar fazendo-o deslizar por entre árvores com copas explodindo em flores e folhas entretecidas, por suas raízes aeróbicas que parecem brotar da terra em busca de ar ao mesmo tempo em que se fincam nela, fazendo pensar na força dos micélios, a parte vegetativa de um fungo ou colônia bacteriana, que pode atingir dimensões imensas; um enigma há pouco descoberto pela ciência, inicialmente pela botânica, posteriormente espalhado pelos mais diversos campos do conhecimento, como é o caso do misterioso rizoma, a teia emaranhada de fios, caules finíssimos, que se irradiam subterraneamente, em estreito, vivo e permanente contato, apropriado pelos filósofos Gilles Deleuze e Feliz Guattari na descrição do modos como as pessoas se inter-relacionam.

Contudo, essas ramificações não devem nos afastar das pinturas, as leituras teóricas não devem se interpor a esse conjunto que quer apenas lembrar nossa raiz, a pureza da nossa condição. Para isso, a artista lança mão de atmosferas sóbrias e ensombrecidas, do intrincado desenho dos troncos cilíndricos, evitando-se em suas bases e reunindo-se mais acima, de onde deixam cair os fiapos flexíveis de seus cipós e lianas, realizados em uma fatura aveludada. Repare-se na calma das sombras  rasgadas por fachos de luzes que entram em diagonais, coadas pela trama cerrada da floresta, como se esta preferisse preservar sua condição de palco da vida que escorre em suas seivas e nos bichos que vão por ali cuidando em viver. Somos apenas uns bichos do mato, “como o pato e o leão”, cantou Gil, do mato cuja inteligência insistimos em não perceber e que por isso mesmo estamos colocando tudo em risco.

Agnaldo Farias

Texto da exposição Catálogo das obras

 

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