UM TERCEIRO OLHAR

03.08.2024

 
 
Néne, 2013 - por Fernando Arias

Néne, 2013 - por Fernando Arias

 
 

Para o filósofo Walter Benjamin, “colecionador é aquele que tem um modo quase místico de se ligar aos objetos: uma intimidade”. E essa é a proposta de Eduardo Fernandes: criar um espaço de proximidade, no qual os visitantes possam conviver com as obras. A exposição UM TERCEIRO OLHAR é antítese do cubo branco, se configurando como uma tentativa de conectar pessoas e produções artísticas, entendendo o colecionismo como gesto cotidiano. A relação entre as obras apresentadas é estabelecida a partir de um pensamento de continuidade entre subalternização (imposições sócio políticas forçadas sobre os sujeitos e a natureza) e libertação (o movimento de liberação dos corpos, pensamentos e sentimentos, a partir da criação artística).

Começamos com o tríptico “Nené” (2013) de Fernando Arias, que explora questões identitárias no contexto da amefricanidade. O sentido é criado a partir do sequenciamento das imagens e, entre submissão e prazer, fetiche e fissura, o artista propõe uma “terceira identidade”, abordando os direitos humanos. Nesta mesma perspectiva, encontramos a obra de Edgar Racy, que investiga o direito de existir. Por meio da repetição e deslocamento de padrões geométricos, ele cria uma linguagem própria que remete a um alfabeto visual. Assim, o políptico “Existir” (2023), conjugado em seus tempos verbais, sugere novas formas de organização semântica, propondo, ao mesmo tempo, novas maneiras de ressignificar a nossa existência.

Ampliando a abordagem sobre formação do nosso universo humano e simbólico, temos a pintura “Menino esquisitinho” (2023) de Chico Cunha. Na tela, o pequeno corpo do protagonista parece espremido por um enorme candelabro. Mas quem é ele? A obra configura uma fábula, nos remetendo à literatura, ao teatro e à fantasia.  Neste entremeio da construção simbólica e da experiência da realidade, chegamos à escultura “Contorno” (2024) de Rosana Naday, por meio da qual nos conectamos com a concretude da natureza. A artista trabalha o bronze com pátina, transformando brilho em opacidade e rigidez em gestuais retorcidos. A exploração contrastante do material ativa aspectos sensoriais, se aproximando mais da abstração do corpo, do que do conceito tradicional do objeto.

Entendendo o corpo como território, Ana Amélia Genioli investiga o submetimento imposto sobre as mulheres. Em “Corpo-Não-Objeto” (2023), as manchas gráficas são produzidas a partir de poses executadas pela artista, sendo o ato performativo uma indicação de que os corpos devem ser respeitados e cuidados: são um território livre. Ao trocar de posições, Genioli libera o corpo para uma multiplicidade de significados. A polifonia dos corpos também é uma característica da produção de Sandra Lapage, cuja obra biofílica evidencia a tendência inata de buscar conexões com a natureza e outras formas de vida e possibilidades de reconstrução do mundo. A escultura “Ophrys sphegodes speculum” (2024) é constituída por materiais de reuso, abordando noções de resiliência e reaproveitamento.

Paralelamente, conceitos biofílicos, que evidenciam a tendência inata de buscar conexões com a natureza, atravessam a pesquisa de Patrícia Rebello. Com uma técnica singular de assemblage, ela cria um tipo de flora exuberante com elementos industriais do cotidiano. Na série “Desinventando coisas e inventando natureza” (2024), o desenvolvimento pictórico se dá através de colagens e sobreposições, constituindo uma espécie de pintura híbrida. Em sequência, a exploração das multipotencialidades na produção contemporânea nos conduz ao vídeopoema “Mar sem orla” (2011) de Daisy Xavier. Vemos uma poesia que pega fogo e desaparece no mar: o texto se desfaz na água e a poesia se torna movimento, revelando o poder imagético da palavra e a capacidade poética da imagem. Neste mesmo horizonte, conhecemos um dos dípticos da série “Labaredas” (2023) de Claudia Melli, na qual a artista reflete sobre um lugar de ancoragem. Produzida com têmpera e nanquim sobre vidro e partindo de um ponto de observação distanciado, a obra indaga sobre a questão perspectiva e produz uma paisagem de calmaria.

UM TERCEIRO OLHAR  é uma exposição que aborda temas da condição humana em seu sentido mais amplo. São nove obras que se inserem no movimento contínuo entre repressão e liberdade, nos posicionando na zona intermediária entre a produção simbólica e o contato com os objetos artísticos. A intimidade com as obras faz do colecionismo um processo constante de encontros e reaproximações, revelando como as obras de arte se tornam extensões do self do colecionador.

Ludimilla Fonseca

Texto da exposição

 

OBRAS