DAISY XAVIER | EM QUEDA LIVRE
As obras que integrarão esta exposição – SOBRE COMO AS COISAS CAEM - são uma série de desenhos e pinturas feitas a partir de materiais corrosivos tais como pó de ferrugem, folhas de metal, ácidos e petróleo em contraste com materiais mais fluidos e delicados tais como nanquim, ecoline e aquarela, e 2 esculturas em metal, articuladas com fios rígidos metálicos em forma de rede.
O título foi extraído de uma passagem do livro “Sete lições de física”, do físico italiano Carlo Rovelli, que aborda a questão da queda passando pela teoria da relatividade de Einstein até a física quântica. A artista explica que este conceito “rege todas as obras”. Ela ressalta que se interessa pela questão da queda em um “sentido muito amplo”, tanto do ponto de vista da física, “que vem desde Aristóteles”, até a “corrosão de toda a materialidade: a pele, os metais e mesmo no percurso de vida e morte, das coisas irem caindo, se despencando, se corroendo”. “Me interessa muito também a queda no mundo contemporâneo, dos valores, dos sentidos, dos parâmetros que estão se perdendo, como se o futuro tivesse um vetor de as coisas irem se dissolvendo. Vamos precisar pensar com novos parâmetros, porque os já estabelecidos, de espaço e tempo, estão se dissolvendo”, afirma. Ela ressalta que vê a dissolução “com bom sentido, sem nostalgia nenhuma. “O que dá problema é se resistir à evolução”, afirma. “Me interessa mais acolher, do que resistir à questão da queda”.
FOTOS
ARQUITETURA HUMANA X ARQUITETURA DOS INSETOS
O disparador dessas questões se deu quando a artista acompanhou a construção de seu ateliê em meio à mata na serra de Petrópolis. Lá pode confrontar a grandiosidade da arquitetura humana, a brutalidade das imensas malhas de ferro, o empilhamento de tijolos e argamassas , os enormes vidros, com a delicadeza e precisão da arquitetura dos insetos.
INSTALAÇÃO METÁLICA, VAZADA
Presentes desde o início de sua trajetória, em 1992, as redes inicialmente tricotadas, com fio de metal por grandes agulhas de madeira, e depois feitas com ponto de rede de pesca, perderam sua ondulação, e representação quase topológica, gravitacional. O fio de metal, agora esticado, forma ângulos precisos, em esculturas vazadas, transparentes, que, articuladas, compõem uma grande instalação, em três dimensões. “Tem uma coisa mais geométrica, aguda, e me interessa essa agudez desses ângulos”, conta. “Agora é um trabalho mais arquitetônico”. Mas de alguma forma a exposição atual se relaciona com aquelas redes primordiais, que eram penduradas: “Impressionante como tem muita relação com esta agora, muita coisa virada pelo avesso”. “O que gosto é que é vazado e leve, meio flutuando, preparado para cair”, observa.
Daisy Xavier incorpora em suas obras sobre tela e papel folhas de metal em que previamente desenhou com petróleo e aplicou ácido, em seu próprio ateliê. Além de servir de demarcador e isolante nos desenhos em metal antes de receber o ácido, o petróleo é usado também em seus trabalhos como pigmento. “O petróleo emerge das profundezas, está no fundo. Aristóteles dizia que as coisas caíam do mundo ideal no céu porque buscavam o centro do universo, que era o centro da Terra...”. “Além de ser um elemento de disputa internacional, e atrair um poder em torno de si, o petróleo é um fóssil e isso me interessa”, afirma.
Em queda livre
a partir de "Sobre como as coisas caem", de Daisy Xavier
Ao esboçar este texto, percebi que ele se endereçava a ti, Daisy, para que operasse como mais uma das conversas que o antecederam. Não empreguei outra forma. Não objetivo tom íntimo, sequer confessional, apenas percebi que este gesto se apresentava pois propositadamente escrevo desde o processo de preparação da mostra – não intenciono escrever algo que elucidaria o que pensamos e dialogamos sobre tua exposição. Carrego uma impressão nítida que só me ocorreu agora e este texto é uma tentativa de provocar mais uma leitura da mostra desde processo de sua preparação: tratam-se de trabalhos que operam no gerúndio.
Ao investigar "Sobre como as coisas caem", tua poética opera neste instante – um durante. Nos volumes tridimensionais de sua instalação e nas formas desenhadas, pintadas, gravadas, fotografadas, reproduzidas e impressas há uma sugestão de movimento em curso, experimentos da ação da força da gravidade. Em constante movimento, como na geometria do Nu descendo a escada, de Duchamp. Ou na montagem do Salto no Vazio, de Yves Klein. Nos corpos moles e formas orgânicas de Ernesto Neto. Ou nas várias frações do tempo capturadas pelas múltiplas lentes de Eadweard J. Muybridge. Lá no corpo da matéria reside também o tempo, como nas mãos negativas de Lascaux ou nos audiovisuais de Bas Jan Ader. Num encontro dolorido com a terra firme, Ader especulou com seu próprio corpo relações de fracasso sob a força da gravidade que apontava para a terra. Pendulando na ponta de um galho de árvore, tombando num rio, soçobrando sobre um cavalete, caindo e caído, provocando a própria queda e deixando-se cair, o que culmina com seu desaparecimento no mar em 1975.
Ao pensar no emaranhado dos volumes em latão que produziste, evocamos a Milha de Fio, de Duchamp, na Primeira Exposição Surrealista – ao mesmo tempo, comunicam- se e desencontram-se das tuas pesquisas com as redes: são formalmente similares, enquanto malha, mas a inconstância que os volumes pontiguados provocam na queda da instalação se diferem tanto da instalação que fizeste nas Cavalariças do Parque Lage, por exemplo –, apenas agora me ocorre pensar contigo sobre outros trabalhos desta constelação.
Em seu texto "Da arte de se equilibrar numa ausência", a Luisa Duarte escreve sobre teu trabalho partindo de uma "gramática da fluidez, do trânsito contínuo". Os versos do Paulinho da Viola que ela cita em sua epígrafe fazem vibrar isso no corpo: "A vida não é só isso que se vê / É um pouco mais / Que os olhos não conseguem perceber /
As mãos não ousam tocar / E os pés recusam pisar". Por conta de outro trabalho, Ligia Canongia percebeu que tu estás "interessada em criar objetos poéticos que interrogam sobre suas próprias formas, no sentido de colocar em xeque sua estabilidade e suas determinações físicas, [...] está sempre a propor situações em trânsito, quebrando a diferença entre os opostos, e dando ao trabalho de arte uma potência fluida e desconhecida". Foi Agnaldo Farias, mirando outro trabalho seu, também quem percebeu: "O problema do movimento parece ser a pedra de toque da poética de Daisy Xavier." Farias foi preciso ao compreender que isto não é teu objeto de atenção enquanto artista, mas constituinte da própria ação artística. "A começar pela proposição da imagem, que se comporta como um duplo daquele que a observa".
A arte dá consistência, espessura às percepções da vida cotidiana. Esta especulação sobre o fracasso e a falha se traduzem não apenas na sua observação de corpos em queda, mas no seu uso de materiais nesta mostra. Corrosivos, ácidos e abrasivos, materiais de gravura e bastões de massa de tinta ou combustível fóssil, intercalam-se em pedaços de papel e telas com as arestas à mostra. Chapas de cobre e metal apresentam-se já corroídas, amassadas, trabalhadas – excedem a moldura. Ali há um punho em riste em ação.
Nossas outras conversas sempre foram mais povoadas pela menção a fenômenos naturais, leis da física, arquiteturas vegetais ou formas de aglomeração, coadunação e justaposição presentes em diferentes vegetais, bactérias, colônias, fungos e, sobretudo, insetos. Pergunto-me o porquê de me ver pensando agora teu trabalho a partir de referentes da história da arte ocidental e leituras críticas de teu trabalho – por muito tempo imaginava apenas os insetos, em meio ao mato, vizinhos do teu ateliê. Às vésperas de finalizar este parágrafo, retomo um alfarrábio de física e busco quais seriam as definições sintéticas para as contribuições de Albert Einstein, a quem tu dedicaste um dos desenhos que se encontram no terceiro andar. Pela força de emprego dos materiais, eles me fazem pensar em alguns dos desenhos de Joseph Beuys, artista que incluiu a alquimia, a simbologia da tradição cristã, a literatura, a antropologia e a ciência como recursos intelectuais para seus trabalhos. No texto científico, é possível ler que, segundo a teoria da relatividade, no espaço-tempo, matéria e energia se destacam, "gerando som e fúria: a gravidade". A poesia já está.
Ulisses Carrilho
Ulisses Carrilho (Porto Alegre, 1990) é curador da Escola de Artes Visuais do Parque Lage e ex-aluno da mesma escola. Pós-graduado em Economia da Cultura (UFRGS), estudou Comunicação Social (PUCRS) e Letras – Português/Francês (UFRGS). Como aluno da Escola, ganhou bolsa-residência para desenvolvimento de projeto no Lugar a Dudas (Cali, Colômbia) onde realizou a mostra “Aquí mis crímenes no serian de amor”.
Iniciou sua trajetória como assistente de direção do Museu de Arte Contemporânea do Rio Grande do Sul. Integrou a equipe de relacionamento institucional da Fundação Bienal do Mercosul (Porto Alegre) e da galeria Rolando Anselmi (Berlim, Alemanha). Na equipe da curadora Luiza Proença, editou as publicações da 9ª Bienal do Mercosul. Contribuiu com textos para o catálogo da 32ª Bienal de São Paulo, além de revistas e periódicos de arte.
Sua pesquisa no âmbito da intersecção das artes e da educação mira contranarrativas, críticas à lógica de produção do capitalismo coginitivo. Interessa-se por manifestações de insubordinação, desobediência e indisciplina e uma pesquisa da intimidade como dispositivo pedagógico. Em 2017, participou da residência Intervalo-Escola, em torno de uma escola de floresta na Floresta Amazônica (Rio Tupana e Igapó-Açu). Desde 2015 trabalha na Escola de Artes Visuais do Parque Lage, com Lisette Lagnado, como assistente de direção e curador assistente. Em 2018, assumiu a curadoria de Ensino e Programa Público da escola. Vive no Rio de Janeiro.
DAISY XAVIER
1952. Rio de Janeiro, Brasil
A forte carga poética presente nas obras de Daisy Xavier discutem o corpo como um lugar de zonas permeáveis. Em seus desenhos, fotos, vídeos, pinturas e instalações, a água e a rede são apresentados como elementos recorrentes que criam campos intercambiáveis, em constante mutação.No Paço Imperial no Rio de Janeiro em 2006, realiza um panorama de sua trajetória com mais de 70 obras na mostra Pequenas Gravidades. Depois da exposição individual no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro em 2011, o livro Daisy Xavier: Último Azul, publicado pela Editora Barléus, foi lançado no stand da Galeria Eduardo Fernandes na SP-Arte em 2012. A galeria realiza ainda em 2011 a mostra individual Para medir um mar, e a artista também participa das exposições coletivas Fluidez do Líquido ao Sólido em 2014, Plural em 2015, e A Natureza Muda de Lugar em 2017.
No Brasil Daisy Xavier expôs em mostras no Museu de Arte Moderna de Salvador e no Centro Cultural CEMIG em Belo Horizonte. Participou no Rio de Janeiro de exposições no Museu de Arte Moderna, no Museu Nacional de Belas Artes, no Centro Cultural Banco do Brasil, na Galeria da Funarte, Galeria de Arte IBEU, na Caixa Econômica, no Centro Cultural Telemar, Oi Futuro, e no Parque Lage. Em São Paulo apresenta suas obras no Itaú Cultural, no Instituto Tomie Ohtake e no Sesc Pinheiros. Expõe nas galerias Florência Loewenthal (Santiago, Chile) e LOKAL 30 (Varsóvia, Polônia) e no Centro Cultural Recoleta (Buenos Aires). Participou da V Bienal do Mercosul (Porto Alegre).
Daisy Xavier é doutora em Psicologia e Psicanálise. Estudou História da Arte com Paulo Sergio Duarte, escultura com Nelson Felix e pintura com Milton Machado e Daniel Senise. Apresentou sua primeira individual no Centro Cultural Brasil-Colômbia em Bogotá em 1992, e foi indicada ao renomado Prêmio Pipa em 2010.